sexta-feira, fevereiro 15, 2008

O respeito nacional

Maybe, maybe it's the clothes we wear, the tasteless bracelets and the dye in our hair.

Brett Anderson foi vocalista da banda Suede. Junto com o guitarrista Richard Oakes, ele escreveu “Trash”, do disco Coming up, de 1996. A banda acabou em 2003; não resistiu ao lulismo. Talvez nunca tenha vindo ao Brasil, mas a música é ótima para o momento. É assim mesmo, tudo aqui chega atrasado. Vamos decorar até o final da era Lula.

Or maybe, maybe it's our nowhere towns, our nothing places and our cellophane sounds.

Nenhum brasileiro ganhou um prêmio Nobel. A Argentina tem, Chile e Colômbia também. Costa Rica... É, isso é lugar-comum, até na hora de nos criticar somos ruins. Um brasileiro foi pro espaço – um planeta sumiu! Nossas piadas são ruins. Tenho certeza que até nossa versão do programa Big Brother é inferior.

Maybe it's our looseness.

Nem nas coisas que só nós fazemos somos mestres. Os desfiles de carnaval são patéticos. Nossos destilados são ruins. A copa de 2014 veio de uma dura disputa contra ninguém. Mas tem uma galera aí: Santos-Dumont, Ayrton Senna, Machado de Assis... O povão gosta de citar alguns nomes para lavar a alma. Uma dúzia de seres que por cá nasceram e em algum lugar obtiveram êxito deve dar pra salvar a nossa história. Não? Não! As conquistas individuais de alguns não se traduzem em superioridade coletiva. Não se traduzem em nada coletivo.

But we're trash, you and me, we're the litter on the breeze.

Mas os prêmios não importam muito, nem a copa, nem o vôlei feminino ou corridas. O buraco é mais embaixo. Muito mais.

Just trash, me and you, it’s in everything we do.

Há muito, o brasileiro perdeu o respeito pelo governo. Sarney ajudou bastante, os militares também. Prefeitos, vereadores e deputados. Vargas, Dutra, Mazzilli... Os senadores vitalícios e secretários do tesouro. Mas até aí tudo bem.

It’s in everything we do.

O governo foi perdendo mais e mais o respeito pelo povo. Culminou no primeiro mandato do Lula; resolveu-se roubar despudorada e escancaradamente. Nem roubar direito aqui se faz. O Brasil virou um grande CR Vasco da Gama, com Zé Dirceu encarnando Eurico Miranda. Os políticos zombaram, roubaram, pisaram em cima, cuspiram e fizeram pouco caso de você. A última gota de respeito que o governo tinha por nós secou em Garanhuns. É o fim. Não, é só o Brasil. Ainda está tudo bem. Toca pra frente. Toca? Pra frente? Não? Não! Mas...

Maybe, maybe it's the things we say, the words we've heard and the music we play.

É, não tocaram. Não tocaram pra frente. Não tocaram o Lula pra fora. Ninguém nem deve ter tocado “Pra não dizer que não falei das flores”. Eduardo não toca mais Marta. Eu toco. Eu toco “Trash”.

Maybe it's our cheapness.

Nós conseguimos, com a reeleição de Lula, os brasileiros perderam o respeito último e o respeito primeiro. O que é um povo sem auto-respeito? No segundo grau, algum professor de geografia ensinou que os bascos formam uma nação sem país. Eu gostei da frase, vem a calhar. O Brasil é um país sem nação.

Or maybe, maybe it's the times we've had, the lazy days and the crazes and the fads.

Nós?

We are trash...

A burrice nacional

Brasileiro é burro. Brasileiros adoram falar mal de americanos. O governo Bush vai chegar ao fim, os brasileiros estão interessados no assunto. Americanos são “idiotas”, “não sabem nada”. O Bush é “burro”, “o demônio”, “a favor da guerra e contra a paz”.

Tudo muito interessante. Quando será que os brasileiros ficaram tão sábios? E quando adquiriram descaramento para degradar o presidente americano e os que nele votaram? Talvez baseado no nosso histórico. Jamais elegeríamos algum burrão como o Bush, apenas pessoas altamente capazes. Ou talvez aquele primo que mora em San Diego tenha ido até o México, comprado e mandado num pacote via USPS. Retidão moral. For Latin American market only. Designed in California. Assembled in Taiwan. Certified by Greenpeace. Best before: January 2003.

É uma boa resolver frustrações denegrindo outrem. Opa! Achamos alguém pior. Estados Unidos – mais extraordinário dos países – é o prato preferido. Se o melhor é pior do que eu, então... Vai, Brasil!

E é muito fácil fazer isso. Brasileiros gostam de dizer que os americanos não sabem nada de história, de geografia política, nada de nada... Quantos em Garanhuns sabem localizar a Alemanha num mapa? Alguém aí sabe o nome da capital do Acre? Com quais países o Brasil faz fronteira? Mas a gente sempre resolve comparar uns alunos da USP com plantadores de batata em Montana. Americanos são “todos ignorantes”.

Dennis Quaid nasceu no Texas, mora em Montana e diz: “Montana é como eu sempre quis que o Texas fosse”. Dennis Quaid é burro: se o Texas fosse como Montana o mundo andaria a cavalo. Eu nunca fui a Montana, mas Montana é como eu sempre quis que o Rio de Janeiro fosse. Aliás, Montana é perto do Canadá. O Canadá tem polícia montada, muito gelo e uma taxa de homicídio de aproximadamente 1 para 100.000 pessoas. No Brasil, é de quase 30 para 100.000. A gente começou a contar isso de forma minimamente séria em 1980. Ficamos em segundo lugar, atrás da Jamaica. Em terceiro? Estados Unidos. Vai, Brasil!

Estamos na frente também no futebol. O futebol é disputado por homens jovens. No Rio de Janeiro, em 2000, havia 205 homicídios por 100.000 homens de 15 a 24 anos. E os americanos? Eles não têm autocrítica? Talvez não. Mas nessa categoria eles ainda estão ganhando.

Ainda no Rio de Janeiro, quando apresentados a tais dados, jovens de boa família e educados em bons colégios tentam justificar: “é óbvio que a taxa no Canadá vai ser menor, afinal no Brasil tem muito mais gente”. Brasileiro é burro mesmo. Vai, Brasil!

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Dos católicos não-praticantes

Estava ao telefone com uma amiga, conversando sobre temas da moral social. Papo vai, papo vem, até que nos vemos discutindo sobre aborto. Ela então me diz:

- Eu nunca faria um aborto. Sou kardecista! Como poderia vir a fazer?

Ao que eu prontamente respondo:

- E, por acaso, católicos podem?

É engraçado como temas polêmicos como este são discutidos: o recurso religioso somente é invocado quando a pessoa se diz “praticante” da sua religião. Aqueles ditos não-praticantes consideram impróprio invocar como argumento dogmas basilares ao cristianismo, como a existência da alma. Este fragmento do diálogo é um belo exemplo de um fenômeno notável, senão óbvio: existe uma equivalência inconsciente, silenciada, velada, entre católicos e agnósticos no Brasil. Exceções existem, mas creio ser patente que esta é a regra geral.

No maior país católico do mundo, com cerca de 80% da população declaradamente fiel aos ditames da Santa Sé, poder-se-ia julgar este fato como esperado. Ou não? Afinal, o que torna estes “católicos não-praticantes” católicos, de fato?

Para muitos, a resposta mais simples e eficiente é esta: tradição familiar. Quando se vive num meio católico, é natural se declarar católico. Quando é comum ver a vovó rezando o terço no quartinho de costura, quando se acha normal ter um crucifixo pregado na parede da sala de jantar, quando se diz “Nossa Senhora!” como interjeição de espanto, é natural se declarar católico. Afirmo que esta declaração nada mais é que um meio de auto-engano – nas palavras de um grande amigo meu, uma forma de escapar às perguntas existenciais fundamentais do ser humano.

Sejamos honestos: é impossível conciliar catolicismo e aborto, homossexualismo, ou mesmo contracepção; não há argumentos teológicos que suportem estas práticas. Tratarei da questão dos métodos contraceptivos. Um padrinho que recomenda à afilhada tomar pílula ou não é um bom cristão (e, portanto, nunca poderia ser padrinho), ou é um homem que abraçou o paradoxo: ao mesmo tempo sabe que não é certo tomar pílula e sabe que é certo tomar pílula. O casamento destas duas afirmações é insustentável – a saída para isto é ativamente evitar o foco mental no assunto, i.e., parar de pensar.

O católico que suporta o uso de métodos contraceptivos é, portanto, um pecador consciente do próprio pecado; se este for admitido por São Pedro por ocasião de sua morte, será uma verdadeira injustiça com as beatas interioranas que tiveram filhos em dúzias (muitas vezes, contra sua vontade) e comprometeram largamente sua qualidade de vida. Acordem, usuários de camisinha: vocês estão condenados ao fogo!

Se isto não é argumento suficiente para fazer um católico não-praticante se arrepender e passar a usar apenas a tabelinha (nada de coito interrompido!), então, este deve aceitar a verdade inexorável, e dizer para si mesmo: “não sou católico”. Neste ponto, ele começa a se livrar das correntes do medo e da inércia mental criados por anos de fácil auto-engano, e começa a aterrorizante tarefa de pensar em sua religiosidade.

Devo ressaltar o que ocorreu aqui: o sujeito observou o paradoxo, pesou o dogma católico contra a prática por ele escolhida, e optou por jogar fora o que lhe era tradicionalmente passado e manter a postura empiricamente observada como correta. Antes de se observar o paradoxo, ele já fazia isto; apenas não lhe ocorria o absurdo decorrido. Nada de concreto mudou em se declarar não-católico – a pessoa apenas deu um passo a mais em direção à coerência e honestidade intelectual.

O agora declarado não-católico, livre do auto-engano, passa a buscar seu lugar, tal e qual a fábula do patinho feio. Longe da segurança das antigas verdades, em primeiro momento ocorre a tentação do relativismo – tudo se torna julgável, questionável, discutível; é a pessoa que se declara crente apenas em um ser superior, uma força maior, uma anima, um Ato Inicial, ou qualquer outra denominação similar. Aqueles que resistem e continuam afirmando que dois mais dois sempre será igual a quatro continuam a jornada intelectual, buscando avaliar de fato as implicações do seu questionar de dogmas.

Uns enveredam para outras religiões ou denominações cristãs. Estes, como mercadores espirituais, se dão por satisfeitos pela simples supressão do dogma gerador do paradoxo, substituindo sua base dogmática por outra, para eles mais palatável. Tudo estará bem para estas pessoas, até que se veja, novamente, em conflito com o que é dogmaticamente imposto; ele terá que, uma outra vez, lutar contra a letargia mental, e o ciclo de questionamento poderá começar novamente. Independentemente da postura religiosa escolhida, existirá sempre o fantasma do paradoxo.

A única saída reside na negação do ciclo como um todo. O conflito evolui de catolicismo versus prática escolhida para, então, teísmo versus ateísmo. É neste ponto em que a imensa maioria das pessoas trava – o medo latente da morte as pressiona rumo ao auto-engano teísta novamente; o sofrimento gera a invenção de um poder de compensação, capaz de dar ao indivíduo a esperança de que, mesmo na mais tenebrosa das situações, alguém estará lá, dedicado a suprir suas necessidades. Para aqueles que vencem a vontade de inventar uma saída mágica para tudo e abraçam a inexorabilidade do aniquilamento do ser, tem-se a conquista suprema: coerência.

Um último recurso de auto-engano resta àqueles que chegam ao conflito final. Quando, a despeito de todo trabalho de reflexão e tentativa real de compreensão da realidade, não se chega à conclusão de que não há significados ocultos em viver (ou seja, não se conclui que o homem é um fim em si mesmo), o medo de não-ser é forte. A saída mais próxima da coerência, para estes indivíduos, é a covardia: negam os dogmas e valores religiosos, mas declaram a impossibilidade de se afirmar (ou negar) a existência de um ser sobrenatural; a esta postura se dá o nome de agnosticismo – por alguns denominados ateísmo fraco, sem intenção pejorativa no termo.

Declarar-se agnóstico, portanto, equivale a se declarar ateu, no que concerne os passos reflexivos que o sujeito realizou até se chegar ao conflito dogmático último (‘existir o superexistente’, ou não). A única (e vital) diferença se dá na dificuldade do primeiro em observar que não há necessidade de sentido em viver senão pela sua vontade de ser significante. Incapaz de se negar o significado devido ao medo que sente, porém atento ao paradoxo gerado pela atribuição de valor cósmico a sua vida, o agnóstico esconde de si próprio a questão, fingindo, como o bom padrinho, que tudo está resolvido. Não há escapatória: a coerência é reservada apenas para mentes corajosas.

Saio agora da visão pessoal para a questão macroscópica inicial. A realidade impõe coerência à massa; a todo momento em que ocorre um choque dogma vs. dado real, a opção da gigantesca maioria será pelo último em detrimento do primeiro. Toda vez que isto ocorre, não interessando o nível de instrução da pessoa, o paradoxo entre sua postura religiosa e sua prática de vida se torna evidente, fazendo-a entrar no ciclo de “queda de graça” que descrevi.

A opção pelo agir conforme a realidade, ao invés de agir contra ela, torna o viver religioso frívolo, consciente ou inconscientemente; já o medo da morte cria a dificuldade por parte da mente inculta em aquiescer ao destino inevitável da não-existência. A condição de contorno, portanto, se torna esquecer o problema – em tempo: viver conforme o real, mostrar-se conforme o dogma. Tal hipocrisia, chamo de agnosticismo religioso; são todos os ‘católicos não-praticantes’ agnósticos religiosos, portanto.

É apenas por esta óptica que se pode entender o comentário de minha amiga. Ao invocar o nome de sua religião, ela disse implicitamente que, como teísta convicta, observava e agia ativamente conforme os dogmas contrários ao aborto - fato que provavelmente não ocorre com a maioria dos 80% de brasileiros ditos católicos, visto que estes assim se declaram largamente por causa da pressão social ao seu redor (não por opção e identificação). Afinal, aí estão os agnósticos velados, capazes de barbaridades como comer carne vermelha nas sextas-feiras santas, desconhecer como se reza o terço, não freqüentar a missa aos domingos e – pasmem – fazer sexo com camisinha.


A esses bárbaros, sugiro: abandonem o pseudoconforto da inércia mental. Pensem!