quarta-feira, outubro 04, 2006

Da legalização das drogas

Há pouco vi uma entrevista com um Nobel de Economia que defendia a legalização das drogas como sendo a única forma de solucionar o problema mundial do narcotráfico. De acordo com ele, a proibição ao consumo de drogas apenas implica na formação de cartéis e quadrilhas especializadas em sua distribuição, sendo uma atitude mal-sucedida na sua missão de coibir o uso das substâncias. A legalização da indústria de drogas, por sua vez, poria fim ao banditismo envolvido e abriria espaço para a ocupação do setor por empresários legítimos - esses, sim, cumpridores das leis e felizes contribuintes para os cofres públicos.

Esse argumento é idiota. Seus defensores esquecem que a proibição ao uso de drogas não é de origem utilitária, mas moral. Possui raízes no decreto de 1875 que proibiu o funcionamento das casas de ópio de San Francisco, na Califórnia, e que acabou por gerar uma lei federal que proibia chineses de traficarem ópio; o medo era que mulheres brancas acabassem atraídas pelo vício. Da mesma forma, o principal argumento utilizado para a proibição do uso da cocaína era o medo de 'cocainized niggers', como diziam os jornais da época, estuprarem mulheres brancas pelas ruas dos Estados Unidos. O consumo da maconha, por sua vez, era um costume identificado com os imigrantes mexicanos recém-chegados ao sul dos EUA.

Uma vez que o consumo de drogas era visto como um desvio de conduta, relacionado a 'raças inferiores' e às classes mais pobres, e não como um perigo à saúde, a proibição nunca teve relação com eventuais conseqüências pelo seu uso. Neste sentido, um argumento utilitário a favor da legalização das drogas não teria validade, uma vez que quem argumenta está, na prática, se esquivando de atacar as causas reais da mesma - seria, segundo Schopenhauer, um belo exemplo de uma mutatio controversiæ. Deve-se atacar a proibição em sua base moral.

Seu fundamento envolve a assunção de que a moral cristã e seus valores associados de ascetismo e moderação é a via correta - e, portanto, compete à sociedade impô-la sobre aqueles pobres desviados. Tal premissa, naturalmente, equivale a dizer que todo conjunto de assertivas morais que não aquelas preconizadas pela doutrina cristã são erradas, e devem ser corrigidas. Uma vez que alguns seguem a moral cristã, enquanto que outros não, decorre que existem pessoas inerentemente corretas e cuja responsabilidade para com as outras é de agir como tutores, punindo desvios e promovendo a boa conduta. Um relacionamento muito próximo daquele existente entre senhor e escravo, entre domador e animal.

Uma sociedade que aceita este padrão de comportamento acha necessário, portanto, que o indivíduo abra mão de algumas de suas liberdades em prol da manutenção daquilo que a maioria (ou minoria influente) define como normal - e isso não para proteger outros indivíduos, mas para protegê-lo dele mesmo. Trata-se de clara invasão em seu direito de privacidade, e toda privação de direitos esconde intenções malignas.

Agora, sim, com a questão moral de alguma forma respondida, podemos pensar no argumento utilitarista como algo a corroborar a petição em prol da legalização das drogas. Imaginemos o momento maravilhoso em que o consumo de narcóticos fosse legalizado no Brasil.


A figura acima, extraída do Strategy Unit Drugs Report elaborado pelo governo da Inglaterra, dá idéia do markup médio exercido sobre a cocaína e a heroína, por conta do prêmio de risco e da repressão da oferta. Observando a margem de contribuição praticada, é de se pensar que, caso fosse um mercado regulamentado, existiria um belo espaço para recolhimento de impostos. Com o consumo de drogas proibido, contudo, todo este markup é repassado para os traficantes e sua estrutura criminosa, contribuindo zero para o custeio da máquina estatal; esta, por sua vez, ainda se obriga a perseguir os delinqüentes, incorrendo em custos extras que, via de regra, são de pouquíssima eficácia no contexto brasileiro. Em resumo, a proibição, além de imoral, é burra.

Vamos assumir como válidas as posição defendida pelo economista de que o consumo de drogas não aumentaria, uma vez que a condição de artigo proibido é o que mais intensamente cria a demanda pelas drogas - e o aumento de consumo advindo do aumento de oferta seria contrabalançado pela redução do apelo do mundo das drogas. Caso isto seja verdade, então não é válida a afirmativa que a liberalização das drogas representaria necessidades de maior investimentos no setor de saúde do país, como muitos dizem - de fato, caso o consumo de drogas permanecesse no mesmo patamar, então a demanda por serviços médicos seria a mesma para ambas as situações. Cai por terra a suposição que a Holanda gasta mais tratando viciados do que consegue recolher em impostos da indústria de narcóticos; os gastos em tratamento seriam custos afundados, na medida em que existiriam em mesma magnitude mesmo com o consumo proibido pelo Estado. Ele é um Nobel; deve saber o que fala.

Se o consumo permanecesse estável, seria possível se realizar uma série de suposições interessantes acerca de como funcionaria o mercado de narcóticos, quando este chegasse ao equilíbrio. Segundo o World Drugs Report 2006, elaborado pela United Nations Office on Drugs and Crime (www.unodc.org), a droga mais consumida no mundo - e, especificamente, no Brasil - é a maconha - ou cannabis, para os acadêmicos. Por esta razão, utilizarei esta para tentar ilustrar quanto, em ordem de grandeza, o país poderia ganhar com a legalização das drogas.

Os dados são muito difusos no que concerne o consumo total de maconha no país. Ainda segundo o WDR 2006, o número oficial de consumidores no país é de 1,2 milhões, sendo 80% da quantidade total de maconha consumida no país equivalente a 85% da produção estimada do Paraguai, estimada entre 6000 e 15000 toneladas; o restante seria produzido em território nacional. Ao todo, temos o consumo total de maconha estimado entre 6400 e 16000 toneladas. Considerando o preço médio no varejo de US$220,00 por quilo (pelo WDR), podemos estimar a movimentação total do mercado de maconha em algo entre US$ 1,4 bilhões a US$ 3,5 bilhões, ou cerca de 0,2% do PIB nacional. Todo esse dinheiro, atualmente, é revertido em armas não registradas, corrupção, tráfico de influência, mortes encomendas e diversas outras mazelas sociais. Uma vez legalizado o mercado da maconha, seria plausível esperar, portanto, um aumento na previsão de crescimento do PIB em, no mínimo, esses 0,2% estimados.

Usando o mercado paralelo como instrumento de precificação, podemos imaginar um futuro legalizado onde o preço médio por quilo continue US$ 220,00, com, digamos, aplicação de IPI de 300% - o mesmo utilizado na indústria tabagista - sobre o preço praticado pela indústria de cigarros de maconha. Neste caso, apenas por este imposto, teríamos o recolhimento de um valor entre US$ 1,0 bilhão e US$ 2,6 bilhões aos cofres públicos - e o preço praticado pela indústria processadora de cannabis, de US$ 55,00 o quilo, ainda seria viável, uma vez que, segundo a WDR, o preço médio praticado pelo produtor no campo é de menos de US$ 30,00 por quilo.

À cotação de hoje, este recolhimento representaria entre R$ 2,2 bilhões e R$ 5,6 bilhões anuais a mais para o Estado - valor entre 11 e 28 vezes o total dedicado no Orçamento de 2006 para o Programa Espacial Brasileiro. E ainda não consideramos os outros ganhos decorrentes da medida, como a poupança de recursos injetados em segurança, a taxação de outras etapas da produção da planta, o aumento nos recursos de FGTS oriundos dos trabalhadores com carteira assinada que ocupariam os milhares de novos postos de trabalho...

Aliás, o mercado teria de investir num cultivo 100% nacional, na medida em que não podemos firmar contratos de importação do produto com as FARC ou com os fornecedores de Fernandinho Beiramar. Já imagino linhas de financiamento do BNDES ou via PROGER, dedicadas a patrocinar os novos produtores.

Tudo isso pensando só na legalização da maconha. É questão de mandar um e-mail de apoio ao Gabeira.