segunda-feira, abril 07, 2008

Do Pasteur - ou: da Razão e da Fé

Tive o desprazer de receber há pouco uma corrente de e-mails enviada por um amigo evangélico. Nesta, um conto era narrado, o qual transcrevo ipsi literis abaixo:

“Um senhor de 70 anos viajava de trem tendo ao seu lado um jovem universitário, que compenetrado lia o seu livro de ciências. O senhor por sua vez lia um livro de capa preta. Foi quando o jovem percebeu que se tratava da Bíblia, e estava aberta no livro de Marcos.

Sem muita cerimônia o jovem interrompeu a leitura do velho e perguntou:

- O senhor ainda acredita neste livro cheio de fábulas e crendices?

- Sim. Disse o senhor. Mas não é um livro de crendices, é a Palavra de Deus. Estou errado?

Com uma risadinha sarcástica respondeu:

- Claro que está! Creio que o senhor deveria estudar a história geral. E veria que a Revolução Francesa, ocorrida há mais de 100 anos, fez o favor de mostrar a miopia da religião. Somente pessoas sem cultura ainda crêem nessa história de que Deus criou o mundo em seis dias. O senhor deveria conhecer um pouco mais sobre que os cientistas dizem sobre isso.

– É mesmo? - perguntou o velho cristão. – E o que dizem os cientistas sobre a Bíblia?

– Bem – respondeu o universitário –, agora eu vou descer na próxima estação, mas deixe o seu cartão que eu lhe enviarei o material pelo correio.

O velho então cuidadosamente abriu o bolso interno do paletó, e deu o cartão ao universitário.

Quando o jovem leu o que estava escrito abaixou a cabeça, e saiu cabisbaixo se sentindo pior que uma ameba.

O cartão dizia:
‘Louis Pasteur, Diretor do Instituto de Pesquisas Científicas da École Normale de Paris’.

Isso aconteceu em 1892.”

A pessoa que me encaminhou o e-mail me perguntou se essa história era ou não verdade. Bom... Pasteur foi um católico fervoroso, segundo a Wikipedia. Tenho certeza de que essa narrativa foi inventada, mas, em tese, poderia ter ocorrido de fato.

O nome do texto é ótimo: “Deus e a Ciência”. Nota-se nele como Pasteur, um homem da Ciência, esvazia o ateísmo ao se professar um verdadeiro cristão. Corroborando à tese desse texto, adiciono outro grande exemplo: Einstein, que era judeu – tendo inclusive cunhado a frase "Deus não joga dados", falando sobre a mecânica quântica (por seu uso de probabilidade para tentar descobrir onde partículas estão, e com que velocidade). Enfim, a existência de grandes ‘homens da Ciência’ defensores do teísmo mostraria a fragilidade da posição dos ateus.

Esta posição é tomada como certa por todos os metidos a missionários, sejam evangélicos ou católicos ou kardecistas ou místicos hippies. Pergunto: por quê? Em que estas pessoas são superiores a mim para julgar a verdade sobre algo?

Enfim, o que torna um cientista digno de respeito intelectual? Nada, a não ser no que concerne assuntos relativos à área de trabalho dele. Em tempo: meus professores na universidade eram pesquisadores em engenharia elétrica. O que tornaria eles uma referência melhor do que eu (ou qualquer outra pessoa) em matérias religiosas? Posso imaginar algum beato respondendo que é o fato de estudarem o “mundo material”, e “buscarem uma explicação para todos os fenômenos”. Se assim for, então por que até hoje a Santa Sé não adicionou cursos de física e cálculo nos seminários?

O fato é que não há razão para um cientista ter respostas religiosas melhores do que as minhas. Um biólogo ou um engenheiro é potencialmente tão conhecedor das obras de São Tomás de Aquino quanto um pedreiro. Se nelas estão reveladas partes importantíssimas da dogmática católica, então não há motivos para se crer que um cientista possua mais respostas em matérias religiosas do que um homem qualquer – na mesma medida em que não há motivos para se crer que pedreiros constituam uma classe de pessoas particularmente iluminada.

Este recurso argumentativo, contudo, é muito comum de ser utilizado, e tende a ser muito eficiente junto a mentes fracas. A chave de sua eficácia está na pretensa dicotomia ciência x religião.

Beatos e evangélicos adoram se usar da retórica da distinção entre razão e fé: supor paralelismo entre os conceitos cria a falsa noção de que ambos são caminhos válidos, porém distintos e interdependentes, para alcançar conclusões válidas. A tentativa é de aproximar essa dicotomia do grupo das dualidades conceituais como preto e branco, quente e frio, cheio ou vazio – ou seja, do conjunto semântico dos termos que são definíveis a partir de seus antônimos. Se o missionário consegue fazer esta aproximação, então o conceito de fé pode se camuflar como um conceito natural e necessário ao homem e sua experiência da realidade.

Chama a atenção o fato de que todos estes pares conceituais podem, e devem, ser definidos em separado. As definições podem ser ostensivas, essenciais, ou mesmo mais abstratas: o preto é esta cor aqui (aponto para o plástico de meu mouse), o branco é essa cor ali (aponto para uma folha de papel), cheio é o estado de meu copo quando não é mais possível adicionar coca-cola a ele sem transbordar, vazio é o estado de ausência de coca-cola em meu copo, e assim vai.

Os teístas tentam usar essa distinção em prol dos seus próprios interesses, muito embora nunca se esforcem para fornecer as definições. À luz disso, vou definir os termos razão e fé adequadamente.

Razão é a faculdade humana que consolida e identifica as informações que nossos sentidos nos fornecem. A razão integra a percepção humana a partir da formação de conceitos e abstrações, fazendo o ser humano sair do nível de percepção (que compartilhamos com os animais) e atingir o nível conceitual, que só nós conseguimos alcançar. O método pelo qual a razão realiza este processo é a lógica, e a lógica é a arte da identificação não-contraditória.

Fé é a aceitação de alegações sem evidências ou provas, possivelmente de forma contraditória ao input sensorial ou a conclusões racionais. Fé é a reivindicação de uma forma de conhecimento não-racional, não-sensorial, indefinível e impossível de se identificar; é a suposta percepção de outra realidade – distinta daquela em que vivemos – cuja única definição é de que não é natural e, portanto, só seria perceptível por vias "supernaturais". Fé é o conjunto de todas as formas de "sei porque sei", dos pseudoconhecimentos cuja contestação gera reações agressivas por parte daqueles que os professam.

Interessante é o fato do mesmo Pasteur católico ter dito, numa palestra em 1864, referindo-se a seu experimento mais célebre, que "nunca mais a doutrina de geração espontânea se recuperará do golpe mortal desferido por esta simples experiência".

Seis dias, Pasteur? Claro, claro. Afinal de contas, como um colega católico costuma me dizer, a coerência é um milagre...

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

O respeito nacional

Maybe, maybe it's the clothes we wear, the tasteless bracelets and the dye in our hair.

Brett Anderson foi vocalista da banda Suede. Junto com o guitarrista Richard Oakes, ele escreveu “Trash”, do disco Coming up, de 1996. A banda acabou em 2003; não resistiu ao lulismo. Talvez nunca tenha vindo ao Brasil, mas a música é ótima para o momento. É assim mesmo, tudo aqui chega atrasado. Vamos decorar até o final da era Lula.

Or maybe, maybe it's our nowhere towns, our nothing places and our cellophane sounds.

Nenhum brasileiro ganhou um prêmio Nobel. A Argentina tem, Chile e Colômbia também. Costa Rica... É, isso é lugar-comum, até na hora de nos criticar somos ruins. Um brasileiro foi pro espaço – um planeta sumiu! Nossas piadas são ruins. Tenho certeza que até nossa versão do programa Big Brother é inferior.

Maybe it's our looseness.

Nem nas coisas que só nós fazemos somos mestres. Os desfiles de carnaval são patéticos. Nossos destilados são ruins. A copa de 2014 veio de uma dura disputa contra ninguém. Mas tem uma galera aí: Santos-Dumont, Ayrton Senna, Machado de Assis... O povão gosta de citar alguns nomes para lavar a alma. Uma dúzia de seres que por cá nasceram e em algum lugar obtiveram êxito deve dar pra salvar a nossa história. Não? Não! As conquistas individuais de alguns não se traduzem em superioridade coletiva. Não se traduzem em nada coletivo.

But we're trash, you and me, we're the litter on the breeze.

Mas os prêmios não importam muito, nem a copa, nem o vôlei feminino ou corridas. O buraco é mais embaixo. Muito mais.

Just trash, me and you, it’s in everything we do.

Há muito, o brasileiro perdeu o respeito pelo governo. Sarney ajudou bastante, os militares também. Prefeitos, vereadores e deputados. Vargas, Dutra, Mazzilli... Os senadores vitalícios e secretários do tesouro. Mas até aí tudo bem.

It’s in everything we do.

O governo foi perdendo mais e mais o respeito pelo povo. Culminou no primeiro mandato do Lula; resolveu-se roubar despudorada e escancaradamente. Nem roubar direito aqui se faz. O Brasil virou um grande CR Vasco da Gama, com Zé Dirceu encarnando Eurico Miranda. Os políticos zombaram, roubaram, pisaram em cima, cuspiram e fizeram pouco caso de você. A última gota de respeito que o governo tinha por nós secou em Garanhuns. É o fim. Não, é só o Brasil. Ainda está tudo bem. Toca pra frente. Toca? Pra frente? Não? Não! Mas...

Maybe, maybe it's the things we say, the words we've heard and the music we play.

É, não tocaram. Não tocaram pra frente. Não tocaram o Lula pra fora. Ninguém nem deve ter tocado “Pra não dizer que não falei das flores”. Eduardo não toca mais Marta. Eu toco. Eu toco “Trash”.

Maybe it's our cheapness.

Nós conseguimos, com a reeleição de Lula, os brasileiros perderam o respeito último e o respeito primeiro. O que é um povo sem auto-respeito? No segundo grau, algum professor de geografia ensinou que os bascos formam uma nação sem país. Eu gostei da frase, vem a calhar. O Brasil é um país sem nação.

Or maybe, maybe it's the times we've had, the lazy days and the crazes and the fads.

Nós?

We are trash...

A burrice nacional

Brasileiro é burro. Brasileiros adoram falar mal de americanos. O governo Bush vai chegar ao fim, os brasileiros estão interessados no assunto. Americanos são “idiotas”, “não sabem nada”. O Bush é “burro”, “o demônio”, “a favor da guerra e contra a paz”.

Tudo muito interessante. Quando será que os brasileiros ficaram tão sábios? E quando adquiriram descaramento para degradar o presidente americano e os que nele votaram? Talvez baseado no nosso histórico. Jamais elegeríamos algum burrão como o Bush, apenas pessoas altamente capazes. Ou talvez aquele primo que mora em San Diego tenha ido até o México, comprado e mandado num pacote via USPS. Retidão moral. For Latin American market only. Designed in California. Assembled in Taiwan. Certified by Greenpeace. Best before: January 2003.

É uma boa resolver frustrações denegrindo outrem. Opa! Achamos alguém pior. Estados Unidos – mais extraordinário dos países – é o prato preferido. Se o melhor é pior do que eu, então... Vai, Brasil!

E é muito fácil fazer isso. Brasileiros gostam de dizer que os americanos não sabem nada de história, de geografia política, nada de nada... Quantos em Garanhuns sabem localizar a Alemanha num mapa? Alguém aí sabe o nome da capital do Acre? Com quais países o Brasil faz fronteira? Mas a gente sempre resolve comparar uns alunos da USP com plantadores de batata em Montana. Americanos são “todos ignorantes”.

Dennis Quaid nasceu no Texas, mora em Montana e diz: “Montana é como eu sempre quis que o Texas fosse”. Dennis Quaid é burro: se o Texas fosse como Montana o mundo andaria a cavalo. Eu nunca fui a Montana, mas Montana é como eu sempre quis que o Rio de Janeiro fosse. Aliás, Montana é perto do Canadá. O Canadá tem polícia montada, muito gelo e uma taxa de homicídio de aproximadamente 1 para 100.000 pessoas. No Brasil, é de quase 30 para 100.000. A gente começou a contar isso de forma minimamente séria em 1980. Ficamos em segundo lugar, atrás da Jamaica. Em terceiro? Estados Unidos. Vai, Brasil!

Estamos na frente também no futebol. O futebol é disputado por homens jovens. No Rio de Janeiro, em 2000, havia 205 homicídios por 100.000 homens de 15 a 24 anos. E os americanos? Eles não têm autocrítica? Talvez não. Mas nessa categoria eles ainda estão ganhando.

Ainda no Rio de Janeiro, quando apresentados a tais dados, jovens de boa família e educados em bons colégios tentam justificar: “é óbvio que a taxa no Canadá vai ser menor, afinal no Brasil tem muito mais gente”. Brasileiro é burro mesmo. Vai, Brasil!

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Dos católicos não-praticantes

Estava ao telefone com uma amiga, conversando sobre temas da moral social. Papo vai, papo vem, até que nos vemos discutindo sobre aborto. Ela então me diz:

- Eu nunca faria um aborto. Sou kardecista! Como poderia vir a fazer?

Ao que eu prontamente respondo:

- E, por acaso, católicos podem?

É engraçado como temas polêmicos como este são discutidos: o recurso religioso somente é invocado quando a pessoa se diz “praticante” da sua religião. Aqueles ditos não-praticantes consideram impróprio invocar como argumento dogmas basilares ao cristianismo, como a existência da alma. Este fragmento do diálogo é um belo exemplo de um fenômeno notável, senão óbvio: existe uma equivalência inconsciente, silenciada, velada, entre católicos e agnósticos no Brasil. Exceções existem, mas creio ser patente que esta é a regra geral.

No maior país católico do mundo, com cerca de 80% da população declaradamente fiel aos ditames da Santa Sé, poder-se-ia julgar este fato como esperado. Ou não? Afinal, o que torna estes “católicos não-praticantes” católicos, de fato?

Para muitos, a resposta mais simples e eficiente é esta: tradição familiar. Quando se vive num meio católico, é natural se declarar católico. Quando é comum ver a vovó rezando o terço no quartinho de costura, quando se acha normal ter um crucifixo pregado na parede da sala de jantar, quando se diz “Nossa Senhora!” como interjeição de espanto, é natural se declarar católico. Afirmo que esta declaração nada mais é que um meio de auto-engano – nas palavras de um grande amigo meu, uma forma de escapar às perguntas existenciais fundamentais do ser humano.

Sejamos honestos: é impossível conciliar catolicismo e aborto, homossexualismo, ou mesmo contracepção; não há argumentos teológicos que suportem estas práticas. Tratarei da questão dos métodos contraceptivos. Um padrinho que recomenda à afilhada tomar pílula ou não é um bom cristão (e, portanto, nunca poderia ser padrinho), ou é um homem que abraçou o paradoxo: ao mesmo tempo sabe que não é certo tomar pílula e sabe que é certo tomar pílula. O casamento destas duas afirmações é insustentável – a saída para isto é ativamente evitar o foco mental no assunto, i.e., parar de pensar.

O católico que suporta o uso de métodos contraceptivos é, portanto, um pecador consciente do próprio pecado; se este for admitido por São Pedro por ocasião de sua morte, será uma verdadeira injustiça com as beatas interioranas que tiveram filhos em dúzias (muitas vezes, contra sua vontade) e comprometeram largamente sua qualidade de vida. Acordem, usuários de camisinha: vocês estão condenados ao fogo!

Se isto não é argumento suficiente para fazer um católico não-praticante se arrepender e passar a usar apenas a tabelinha (nada de coito interrompido!), então, este deve aceitar a verdade inexorável, e dizer para si mesmo: “não sou católico”. Neste ponto, ele começa a se livrar das correntes do medo e da inércia mental criados por anos de fácil auto-engano, e começa a aterrorizante tarefa de pensar em sua religiosidade.

Devo ressaltar o que ocorreu aqui: o sujeito observou o paradoxo, pesou o dogma católico contra a prática por ele escolhida, e optou por jogar fora o que lhe era tradicionalmente passado e manter a postura empiricamente observada como correta. Antes de se observar o paradoxo, ele já fazia isto; apenas não lhe ocorria o absurdo decorrido. Nada de concreto mudou em se declarar não-católico – a pessoa apenas deu um passo a mais em direção à coerência e honestidade intelectual.

O agora declarado não-católico, livre do auto-engano, passa a buscar seu lugar, tal e qual a fábula do patinho feio. Longe da segurança das antigas verdades, em primeiro momento ocorre a tentação do relativismo – tudo se torna julgável, questionável, discutível; é a pessoa que se declara crente apenas em um ser superior, uma força maior, uma anima, um Ato Inicial, ou qualquer outra denominação similar. Aqueles que resistem e continuam afirmando que dois mais dois sempre será igual a quatro continuam a jornada intelectual, buscando avaliar de fato as implicações do seu questionar de dogmas.

Uns enveredam para outras religiões ou denominações cristãs. Estes, como mercadores espirituais, se dão por satisfeitos pela simples supressão do dogma gerador do paradoxo, substituindo sua base dogmática por outra, para eles mais palatável. Tudo estará bem para estas pessoas, até que se veja, novamente, em conflito com o que é dogmaticamente imposto; ele terá que, uma outra vez, lutar contra a letargia mental, e o ciclo de questionamento poderá começar novamente. Independentemente da postura religiosa escolhida, existirá sempre o fantasma do paradoxo.

A única saída reside na negação do ciclo como um todo. O conflito evolui de catolicismo versus prática escolhida para, então, teísmo versus ateísmo. É neste ponto em que a imensa maioria das pessoas trava – o medo latente da morte as pressiona rumo ao auto-engano teísta novamente; o sofrimento gera a invenção de um poder de compensação, capaz de dar ao indivíduo a esperança de que, mesmo na mais tenebrosa das situações, alguém estará lá, dedicado a suprir suas necessidades. Para aqueles que vencem a vontade de inventar uma saída mágica para tudo e abraçam a inexorabilidade do aniquilamento do ser, tem-se a conquista suprema: coerência.

Um último recurso de auto-engano resta àqueles que chegam ao conflito final. Quando, a despeito de todo trabalho de reflexão e tentativa real de compreensão da realidade, não se chega à conclusão de que não há significados ocultos em viver (ou seja, não se conclui que o homem é um fim em si mesmo), o medo de não-ser é forte. A saída mais próxima da coerência, para estes indivíduos, é a covardia: negam os dogmas e valores religiosos, mas declaram a impossibilidade de se afirmar (ou negar) a existência de um ser sobrenatural; a esta postura se dá o nome de agnosticismo – por alguns denominados ateísmo fraco, sem intenção pejorativa no termo.

Declarar-se agnóstico, portanto, equivale a se declarar ateu, no que concerne os passos reflexivos que o sujeito realizou até se chegar ao conflito dogmático último (‘existir o superexistente’, ou não). A única (e vital) diferença se dá na dificuldade do primeiro em observar que não há necessidade de sentido em viver senão pela sua vontade de ser significante. Incapaz de se negar o significado devido ao medo que sente, porém atento ao paradoxo gerado pela atribuição de valor cósmico a sua vida, o agnóstico esconde de si próprio a questão, fingindo, como o bom padrinho, que tudo está resolvido. Não há escapatória: a coerência é reservada apenas para mentes corajosas.

Saio agora da visão pessoal para a questão macroscópica inicial. A realidade impõe coerência à massa; a todo momento em que ocorre um choque dogma vs. dado real, a opção da gigantesca maioria será pelo último em detrimento do primeiro. Toda vez que isto ocorre, não interessando o nível de instrução da pessoa, o paradoxo entre sua postura religiosa e sua prática de vida se torna evidente, fazendo-a entrar no ciclo de “queda de graça” que descrevi.

A opção pelo agir conforme a realidade, ao invés de agir contra ela, torna o viver religioso frívolo, consciente ou inconscientemente; já o medo da morte cria a dificuldade por parte da mente inculta em aquiescer ao destino inevitável da não-existência. A condição de contorno, portanto, se torna esquecer o problema – em tempo: viver conforme o real, mostrar-se conforme o dogma. Tal hipocrisia, chamo de agnosticismo religioso; são todos os ‘católicos não-praticantes’ agnósticos religiosos, portanto.

É apenas por esta óptica que se pode entender o comentário de minha amiga. Ao invocar o nome de sua religião, ela disse implicitamente que, como teísta convicta, observava e agia ativamente conforme os dogmas contrários ao aborto - fato que provavelmente não ocorre com a maioria dos 80% de brasileiros ditos católicos, visto que estes assim se declaram largamente por causa da pressão social ao seu redor (não por opção e identificação). Afinal, aí estão os agnósticos velados, capazes de barbaridades como comer carne vermelha nas sextas-feiras santas, desconhecer como se reza o terço, não freqüentar a missa aos domingos e – pasmem – fazer sexo com camisinha.


A esses bárbaros, sugiro: abandonem o pseudoconforto da inércia mental. Pensem!

terça-feira, novembro 20, 2007

Das estatísticas

Dados de uma pesquisa publicada no "American Journal of Public Health" indicam que Diadema conseguiu reduzir pela metade o número de assassinatos nos últimos dois anos devido à proibição da venda de bebidas alcoólicas em toda cidade a partir de 23:00. A pesquisa foi realizada em conjunto por pesquisadores do PIRE Prevention Research Center, de Berkeley, Califórnia, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Nottingham, Inglaterra.

É interessante como as pessoas vêem estatísticas. É um recurso argumentativo excelente, em especial para as pessoas mais malévolas - aquelas que necessitam ganhar a atenção dos ignorantes para satisfazer seus egos diminutos. Em verdade, o uso comum do argumento estatístico em discussões sociais envolve dois erros graves de definição.

Primeiramente, porque em geral coloca a exceção como regra. Digamos que se fale, por exemplo, que "estatísticas mostram que ocorre uma redução de 40% em casos de depredações e roubo a lojas quando se decreta o toque de recolher de menores de 18 anos nas ruas do centro da cidade". Digamos que essa afirmação seja utilizada num debate que tem por tema "a juventude e a criminalidade". A tese subjacente, a principal dentre as várias possíveis, é "é preferível limitar a liberdade dos jovens em prol da proteção do bem comum". Será?

Isto seria assim apenas para o caso de todo jovem ser um delinqüente em potencial, o que é uma absoluta inverdade. O defensor dessa hipótese confunde lógica das probabilidades com lógica das possibilidades: ele pensa que um adolescente é parte idôneo, parte criminoso - ao invés de pensar que existem adolescentes idôneos, assim como existem adolescentes criminosos. Tratar adolescentes idôneos como criminosos é uma violência intolerável, na medida em que direitos fundamentais lhe são cerceados ao se considerar, irracionalmente, que ele possui alguma "predisposição ao mal".

Um tema muito importante no estudo de Lógica Nebulosa envolve a diferenciação entre probabilidade de algo pertencer a um conjunto e o grau de pertinência a um conjunto (que pode ser entendido como um 'grau de possibilidade'). Para explicar esta diferença, elaboro uma pergunta: se alguém estivesse no deserto, morto de sede, e encontrasse duas garrafas d'água - uma contendo a inscrição "Água Potável (Probabilidade 99%)" e a outra, "Água Potável (Grau de Pertinência 99%)" -, qual das duas deveria abrir?

Para este caso, seria preferível escolher uma garrafa com 99% de grau de pertinência ao conjunto de águas potáveis, ao invés de escolher uma garrafa com 99% de probabilidade de conter água potável. Isso, pois no caso do corpo humano, podemos tolerar uma água contendo 1% de impurezas, enquanto que o risco de 1% de abrir uma garrafa contendo água venenosa é simplesmente alto demais.

Este pensamento não pode ser estendido para a área social, simplesmente porque, numa sociedade livre, todos os indivíduos possuem os mesmos direitos - e, especialmente, não existe algo como o direito de se cercear direitos. Tal prerrogativa é imoral, na medida em que colocaria indivíduos como superiores a outros. E, em matéria de moral, não existe algo como sujo e limpo ao mesmo tempo.

Em segundo lugar, porque confunde o que vem a priori e o que vem a posteriori. Voltemos à questão do álcool. É indiscutível a correlação entre consumo de álcool e violência; tal relação já foi atestada em um sem-número de estudos. Mas tal comprovação não indica, em hipótese alguma, que consumo de álcool implica violência. Para se entender isso, pensemos em duas características típicas da síndrome de Down: ter língua protrusa e pescoço curto. É imediato observarmos que existe uma correlação positiva entre estas duas características - ao mesmo tempo, não é verdade que ter pescoço curto implica ter língua protrusa; o Lula está aí como exemplo (ele pode ser retardado, mas não é Down). Ter um cromossomo 21 a mais implica ambas as características, contudo - e esta é a verdadeira razão a priori.

A mera existência de indivíduos que ingerem álcool e não se tornam agressivos anula a hipótese da implicação entre álcool e violência. Decorre que, de fato, algumas pessoas bebem e permanecem tranqüilas, enquanto outras bebem e ficam violentas. A proibição de beber penaliza aquelas que desfrutam de sua liberdade de modo responsável. Existe algum fundamento moral nestas serem prejudicadas pelos atos de terceiros?

Admiráveis são aqueles que respondem corretamente esta pergunta.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Da legalização das drogas

Há pouco vi uma entrevista com um Nobel de Economia que defendia a legalização das drogas como sendo a única forma de solucionar o problema mundial do narcotráfico. De acordo com ele, a proibição ao consumo de drogas apenas implica na formação de cartéis e quadrilhas especializadas em sua distribuição, sendo uma atitude mal-sucedida na sua missão de coibir o uso das substâncias. A legalização da indústria de drogas, por sua vez, poria fim ao banditismo envolvido e abriria espaço para a ocupação do setor por empresários legítimos - esses, sim, cumpridores das leis e felizes contribuintes para os cofres públicos.

Esse argumento é idiota. Seus defensores esquecem que a proibição ao uso de drogas não é de origem utilitária, mas moral. Possui raízes no decreto de 1875 que proibiu o funcionamento das casas de ópio de San Francisco, na Califórnia, e que acabou por gerar uma lei federal que proibia chineses de traficarem ópio; o medo era que mulheres brancas acabassem atraídas pelo vício. Da mesma forma, o principal argumento utilizado para a proibição do uso da cocaína era o medo de 'cocainized niggers', como diziam os jornais da época, estuprarem mulheres brancas pelas ruas dos Estados Unidos. O consumo da maconha, por sua vez, era um costume identificado com os imigrantes mexicanos recém-chegados ao sul dos EUA.

Uma vez que o consumo de drogas era visto como um desvio de conduta, relacionado a 'raças inferiores' e às classes mais pobres, e não como um perigo à saúde, a proibição nunca teve relação com eventuais conseqüências pelo seu uso. Neste sentido, um argumento utilitário a favor da legalização das drogas não teria validade, uma vez que quem argumenta está, na prática, se esquivando de atacar as causas reais da mesma - seria, segundo Schopenhauer, um belo exemplo de uma mutatio controversiæ. Deve-se atacar a proibição em sua base moral.

Seu fundamento envolve a assunção de que a moral cristã e seus valores associados de ascetismo e moderação é a via correta - e, portanto, compete à sociedade impô-la sobre aqueles pobres desviados. Tal premissa, naturalmente, equivale a dizer que todo conjunto de assertivas morais que não aquelas preconizadas pela doutrina cristã são erradas, e devem ser corrigidas. Uma vez que alguns seguem a moral cristã, enquanto que outros não, decorre que existem pessoas inerentemente corretas e cuja responsabilidade para com as outras é de agir como tutores, punindo desvios e promovendo a boa conduta. Um relacionamento muito próximo daquele existente entre senhor e escravo, entre domador e animal.

Uma sociedade que aceita este padrão de comportamento acha necessário, portanto, que o indivíduo abra mão de algumas de suas liberdades em prol da manutenção daquilo que a maioria (ou minoria influente) define como normal - e isso não para proteger outros indivíduos, mas para protegê-lo dele mesmo. Trata-se de clara invasão em seu direito de privacidade, e toda privação de direitos esconde intenções malignas.

Agora, sim, com a questão moral de alguma forma respondida, podemos pensar no argumento utilitarista como algo a corroborar a petição em prol da legalização das drogas. Imaginemos o momento maravilhoso em que o consumo de narcóticos fosse legalizado no Brasil.


A figura acima, extraída do Strategy Unit Drugs Report elaborado pelo governo da Inglaterra, dá idéia do markup médio exercido sobre a cocaína e a heroína, por conta do prêmio de risco e da repressão da oferta. Observando a margem de contribuição praticada, é de se pensar que, caso fosse um mercado regulamentado, existiria um belo espaço para recolhimento de impostos. Com o consumo de drogas proibido, contudo, todo este markup é repassado para os traficantes e sua estrutura criminosa, contribuindo zero para o custeio da máquina estatal; esta, por sua vez, ainda se obriga a perseguir os delinqüentes, incorrendo em custos extras que, via de regra, são de pouquíssima eficácia no contexto brasileiro. Em resumo, a proibição, além de imoral, é burra.

Vamos assumir como válidas as posição defendida pelo economista de que o consumo de drogas não aumentaria, uma vez que a condição de artigo proibido é o que mais intensamente cria a demanda pelas drogas - e o aumento de consumo advindo do aumento de oferta seria contrabalançado pela redução do apelo do mundo das drogas. Caso isto seja verdade, então não é válida a afirmativa que a liberalização das drogas representaria necessidades de maior investimentos no setor de saúde do país, como muitos dizem - de fato, caso o consumo de drogas permanecesse no mesmo patamar, então a demanda por serviços médicos seria a mesma para ambas as situações. Cai por terra a suposição que a Holanda gasta mais tratando viciados do que consegue recolher em impostos da indústria de narcóticos; os gastos em tratamento seriam custos afundados, na medida em que existiriam em mesma magnitude mesmo com o consumo proibido pelo Estado. Ele é um Nobel; deve saber o que fala.

Se o consumo permanecesse estável, seria possível se realizar uma série de suposições interessantes acerca de como funcionaria o mercado de narcóticos, quando este chegasse ao equilíbrio. Segundo o World Drugs Report 2006, elaborado pela United Nations Office on Drugs and Crime (www.unodc.org), a droga mais consumida no mundo - e, especificamente, no Brasil - é a maconha - ou cannabis, para os acadêmicos. Por esta razão, utilizarei esta para tentar ilustrar quanto, em ordem de grandeza, o país poderia ganhar com a legalização das drogas.

Os dados são muito difusos no que concerne o consumo total de maconha no país. Ainda segundo o WDR 2006, o número oficial de consumidores no país é de 1,2 milhões, sendo 80% da quantidade total de maconha consumida no país equivalente a 85% da produção estimada do Paraguai, estimada entre 6000 e 15000 toneladas; o restante seria produzido em território nacional. Ao todo, temos o consumo total de maconha estimado entre 6400 e 16000 toneladas. Considerando o preço médio no varejo de US$220,00 por quilo (pelo WDR), podemos estimar a movimentação total do mercado de maconha em algo entre US$ 1,4 bilhões a US$ 3,5 bilhões, ou cerca de 0,2% do PIB nacional. Todo esse dinheiro, atualmente, é revertido em armas não registradas, corrupção, tráfico de influência, mortes encomendas e diversas outras mazelas sociais. Uma vez legalizado o mercado da maconha, seria plausível esperar, portanto, um aumento na previsão de crescimento do PIB em, no mínimo, esses 0,2% estimados.

Usando o mercado paralelo como instrumento de precificação, podemos imaginar um futuro legalizado onde o preço médio por quilo continue US$ 220,00, com, digamos, aplicação de IPI de 300% - o mesmo utilizado na indústria tabagista - sobre o preço praticado pela indústria de cigarros de maconha. Neste caso, apenas por este imposto, teríamos o recolhimento de um valor entre US$ 1,0 bilhão e US$ 2,6 bilhões aos cofres públicos - e o preço praticado pela indústria processadora de cannabis, de US$ 55,00 o quilo, ainda seria viável, uma vez que, segundo a WDR, o preço médio praticado pelo produtor no campo é de menos de US$ 30,00 por quilo.

À cotação de hoje, este recolhimento representaria entre R$ 2,2 bilhões e R$ 5,6 bilhões anuais a mais para o Estado - valor entre 11 e 28 vezes o total dedicado no Orçamento de 2006 para o Programa Espacial Brasileiro. E ainda não consideramos os outros ganhos decorrentes da medida, como a poupança de recursos injetados em segurança, a taxação de outras etapas da produção da planta, o aumento nos recursos de FGTS oriundos dos trabalhadores com carteira assinada que ocupariam os milhares de novos postos de trabalho...

Aliás, o mercado teria de investir num cultivo 100% nacional, na medida em que não podemos firmar contratos de importação do produto com as FARC ou com os fornecedores de Fernandinho Beiramar. Já imagino linhas de financiamento do BNDES ou via PROGER, dedicadas a patrocinar os novos produtores.

Tudo isso pensando só na legalização da maconha. É questão de mandar um e-mail de apoio ao Gabeira.

A guerra Brasil-Bolívia

Não aconteceu. Nada aconteceu... Nosso Vietnã...

No primeiro dia de maio, tropas bolivianas ocuparam as instalações da Petrobras. O presidente Evo Morales liderou pessoalmente a intrépida investida. Um militar sobe no alto da refinaria e hasteia o estandarte nacional e a inscrição “nacionalizada”. Eles vencem. Talvez o maior êxito militar da história da Bolívia.

Desrespeito. Fanfarronice. E agora? Ocuparam também instalações de outras empresas estrangeiras, claro. Mas nosso caso é mais grave.

A Petrobras investiu, desde 1996, mais de um bilhão e meio de dólares diretamente na Bolívia. A Petrobras explorava os dois principais campos de gás e as duas maiores refinarias da Bolívia. A Petrobras era a maior empresa atuando na Bolívia. A Petrobras respondia por 15% do PIB da Bolívia. A Petrobras é controlada pelo Estado brasileiro. O bizarro interesse da União na empresa [ver: http://indiavelha.blogspot.com/2006/10/da-petrobras.html] ajudou a Bolívia a nos fazer de palhaços.

Outro fator a instigar vingança é nossa entrada tardia no país. A Bolívia sempre negociou com a Argentina. Lá pelos anos 70, a Argentina se tornou auto-suficiente em gás – deram adeus pra Bolívia. O Brasil precisa de gás natural. O gasoduto Brasil-Bolívia só se tornou um projeto relevante na década de 90. E agora, após pouco tempo e muito dinheiro, somo chutados.

Um fator adicional digno de nota é a obrigação do exercício do imperialismo. Mas foi-se – foi-se há muito – o tempo em que o Brasil botava ordem na América Latina. Nossas investidas relativamente bem sucedidas de imperialismo local foram esquecidas. O Brasil é tão imperialista... A Bolívia zombou do Brasil.

Nosso ex-sindicalista agitador não demonstrou sua ira. A ala comunista de nossos políticos também não. Sanções comerciais? Sobretaxas? Políticos da base governista, ex-ministros, jornalistas, feirantes, professoras primárias, vendedores de cerveja... Grande parte do povo brasileiro apoiou a ação da Bolívia.

Em algum momento a Petrobras passou a ter a imagem de empresa grande minimamente eficiente e competente. Uma empresa que investe em outros países. Uma empresa como o Brasil não está acostumado. Foi demais para boa parte da população. Tal coisa não pode ser! Traição! Venderam-se pro capital estrangeiro. Talvez essa seja a opinião do nosso líder máximo. Retaliação? Nada, está tudo bem... O atual governo prova, mais uma vez, ser um total fracasso nas relações internacionais.

O Brasil poderia ter invadido a Bolívia. Derrubado o governo. O Brasil poderia ter declarado guerra. Nossa juventude deveria se alistar. Batalhas terríveis na selva amazônica. No Acre. O Acre seria o palco do confronto armado. Nosso Vietnã. As nossas bem treinadas forças armadas contra civis bolivianos.

Nosso Vietnã! Nosso Vietnã se foi. Nossos filhos de classe média lutando na selva do Acre. Morrendo sem saber a razão. Lutando pela nossa empresa. Lutando pelo orgulho nacional. Os terríveis trópicos; umidade, mosquitos, doenças, sangue, soro.

Evo Morales ainda tentou. Evo Morales prometeu nacionalizar todos os outros recursos naturais. Evo Morales confiscou ações. Evo Morales fez débeis declarações sobre o Acre. Evo Morales atirou palavras para todos os lados.

O Acre. A Bolívia quer o Acre? Talvez ainda possamos lutar pelo Acre. Talvez ele se torne nosso Vietnã pelos seus próprios meios. Borracheiros bolivianos, cocaleiros bolivianos, índios bolivianos, guerrilheiros bolivianos... Eles contra os nossos filhos de classe média. Na selva, no calor, na água; cobras, piranhas, febre, drogas.

Por enquanto, o Brasil se acovarda diante da Bolívia.

Mas ainda há esperança!

segunda-feira, outubro 02, 2006

Da Petrobras

Recentemente, ouvi uma colocação muito interessante atribuída a um diretor da Petrobras:

- No setor de petróleo, existem alguns tipos diferentes de empresas. Existem as que são bem geridas, existem as que são mal geridas, e existe a Petrobras.

Usarei desta afirmação e de minha liberdade em ser (possivelmente) irresponsável em minhas posições para declarar que não faz mais sentido existir a estatal Petrobras.

Num mundo em que o famoso relatório do Walter Link provou-se incorreto - ou correto, porém obsoleto -, com a indústria brasileira conseguindo produzir petróleo a custo competitivo e em volume superior ao consumo nacional, não há necessidade do Estado ser patrocinador da setor petrolífero. Neste contexto, deixa-se de lado a questão estratégica de investimento no segmento e passa-se a ter a empresa como arrecadadora indireta de impostos para a União. A Petrobras é nossa. Que orgulho.

Entendo, concordo e defendo a tese de que o Estado deve colher os frutos de seu investimento na Petrobras; afinal, uma quantidade colossal de recursos foram direcionados a sua construção - um investimento arriscado ao extremo, especialmente quando se consideram todas as evidências que apontavam para a inexistência de reservas viáveis de petróleo em território brasileiro. O sucesso da prospecção em águas profundas e ultraprofundas deve, naturalmente, gerar retornos para o principal investidor da Petrobras. O Estado merece, por sua atitude empreendedora.

Mas o Estado tem um papel completamente diferente daquele exercido por um acionista comum; sua missão é zelar pelos interesses nacionais, e é de interesse nacional ter o setor petrolífero eficiente e uma Petrobras saneada e competitiva internacionalmente.

No dito acima, pressupus que o Estado é inerentemente incompetente em matéria de gestão empresarial. Empresas estatais são vistas como agentes políticos ao invés de empresas propriamente ditas, incorporando "responsabilidades sociais" incompatíveis com a realidade de mercado. Por força de politicagem e da tradicional visão de curto prazo tupiniquim, transformam-se em cabides de emprego e, baseando-se em sua presença quase exclusiva no mercado brasileiro, conseguem obter um resultado financeiro positivo. De fato, em matéria de administração de empresas, o Estado é um excelente arrecadador de impostos.

Gostaria muito que a União vendesse a Petrobras. É essa, na minha opinião, a melhor forma do Estado aliar retorno sobre seu investimento e compromisso com sua vocação. Seria uma maravilha. Imaginemos as possibilidades que isso poderia abrir para o país. Novamente invocando minha liberdade em ser irresponsável, mostro, pelas seguintes continhas, a beleza de um futuro improvável em que o Estado se livrasse dela.

Hoje por volta das 15:30, o preço das duas ações da Petrobras, Petrobras PN e Petrobras ON, chegou a, respectivamente, R$ 40,84 e R$ 45,21, segundo o InvestShop. De acordo com o site de relacionamento com investidores da Petrobras - www.petrobras.com.br/ri -, existem 2.536.673.672 ações ON, das quais a União detém 55,7%, e 1.849.478.028 ações PN. O valor de mercado da empresa, portanto, ultrapassa os R$ 190 bilhões (pouco menos de 10% do PIB nacional), sendo exatos R$ 63.878.440.308,09 a parcela referente à União por esse dado preço.

Pois bem, digamos que a União realizasse a pulverização do controle que detém da Petrobras, vendendo todas as suas ações da empresa em bolsa. Digamos que, numa operação extremamente burra, ela vendesse essas ações convertendo-as todas nesse exato montante, sem prêmio adicional. Que beleza, quase R$ 64 bilhões nos cofres públicos.

Agora consideremos a dívida pública nacional que, segundo o site do Banco Central, chegou a R$ 1.030.932.989.883,62 em julho passado. Destes, 47,19% (ou R$ 486.450.084.280,18) é indexado à SELIC, cuja meta atual é de 14,25% ao ano - a propósito, taxa substancialmente maior que as cobradas pelas linhas de crédito concedidas pelo FMI. Por ela, paga-se R$ 69 bilhões ao ano em juros. Em nosso leviano exercício mental, isso dá mais de uma Petrobras por ano.

Digamos que todo dinheiro conseguido pela venda da Petrobras fosse revertido na amortização da dívida indexada à SELIC. Teríamos, à taxa atual, a economia de R$ 9,1 bilhões anuais em juros, ou 2,3% da receita do Tesouro Nacional em 2005, ou 5,8% do total de ICMS recolhido em 2005, ou o dobro do orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia para 2006. Pode parecer pouco, mas uma mudança como esta significaria a redução da relação dívida/PIB dos atuais 52,1% para uns 48,9%, permitindo, por exemplo, a redução em 20% da alíquota de ICMS praticada em São Paulo.

Deixamos de considerar receitas do Estado provenientes da Petrobras - e, por esta, me refiro ao repasse de dividendos. Considerando-se que, segundo informa o site da Bovespa, a Petrobras pagou cerca de R$ 20 bilhões em dividendos no período 1994-2004, é uma boa aproximação dizer que o repasse para a União tenha sido de aproximadamente um bilhão de reais anuais. Pois bem, que se faça R$ 8 bilhões economizados, então. Não interessa; a magnitude dos valores é a mesma.

Até aqui pensamos apenas no impacto positivo sobre as contas públicas, desconsiderando-se o ganho em produtividade originado pela transformação da Petrobras em empresa privada. O corpo diretor passaria a ser composto apenas por pessoas tecnicamente competentes, e não mais por políticos ligados ao governo federal, e eventuais funcionários em excesso seriam riscados da folha de pagamentos. O valor da empresa cresceria na medida em que custos fossem cortados e os recursos humanos da empresa se tornassem cada vez mais profissionais. No longo prazo, teríamos uma empresa mais forte, mais produtiva e ainda mais capaz de realizar investimentos.

Puxa, que beleza que seria.

domingo, outubro 01, 2006

Do Collor

O maior presidente do Brasil foi Fernando Collor.

Imagine um presidente que consiga convencer o povo brasileiro a apoiar um projeto de redução do tamanho do Estado. Imagine um candidato que consiga se eleger com o discurso de abertura econômica para a melhoria da qualidade dos bens consumidos no país. Imagine uma figura política capaz de polarizar todo o país - tanto o Brasil pobre como o Brasil rico - em torno de ideais de laissez-faire.

Alguém capaz de realizar a demissão em massa de funcionários públicos e a extinção de autarquias, fundações e empresas públicas; de reduzir tarifas de importação, de modo a fazer com que o Zé Fulano conseguisse comprar um carro novo, e não uma carroça. E, sobretudo, capaz de fazer essas coisas e arrancar lágrimas de esperança e admiração de donas-de-casa e senhores respeitáveis por todos os lares do país.

Não fosse por ele, poderíamos estar, até hoje, obrigados a usar os poderosíssimos computadores Cobra - e proibidos de importar softwares como o Office ou o Windows (afinal, se temos o Carta Certa, pra que usar o Word?). Não fosse por ele, o Brasil não seria hoje o país com maior número de montadoras instaladas - 22, ao todo -, e certamente não teria uma frota de automóveis com idade média semelhante à japonesa. Não fosse o absurdo e imbecilidade do Plano Collor...

Fazendo uso de discurso típico da esquerda tupiniquim, digo que escândalo do PC Farias deve ter sido sobrevalorizado, considerando o desinteresse sobre os crimes petistas e seus óbvios vínculos com o presidente Lula. Afinal, se, com mensalão, sanguessugas, vampiros e dossiê, a candidatura Lula permanece viável - e bota viável nisso -, então o impeachment do Collor só pode ter sido armação das elites reacionárias contra um presidente com idéias revolucionárias. A teoria conspiratória é facilmente elaborada: afinal, a abertura econômica representava um perigo para a indústria nacional, na medida em que esta dependia de protecionismo alfandegário para forçar o brasileiro a consumir um produto caro e de baixa qualidade.

Precisamos de um novo Indiana Jones dos trópicos.