Do Pasteur - ou: da Razão e da Fé
“Um senhor de 70 anos viajava de trem tendo ao seu lado um jovem universitário, que compenetrado lia o seu livro de ciências. O senhor por sua vez lia um livro de capa preta. Foi quando o jovem percebeu que se tratava da Bíblia, e estava aberta no livro de Marcos.
Sem muita cerimônia o jovem interrompeu a leitura do velho e perguntou:
- O senhor ainda acredita neste livro cheio de fábulas e crendices?
- Sim. Disse o senhor. Mas não é um livro de crendices, é a Palavra de Deus. Estou errado?
Com uma risadinha sarcástica respondeu:
- Claro que está! Creio que o senhor deveria estudar a história geral. E veria que a Revolução Francesa, ocorrida há mais de 100 anos, fez o favor de mostrar a miopia da religião. Somente pessoas sem cultura ainda crêem nessa história de que Deus criou o mundo em seis dias. O senhor deveria conhecer um pouco mais sobre que os cientistas dizem sobre isso.
– É mesmo? - perguntou o velho cristão. – E o que dizem os cientistas sobre a Bíblia?
– Bem – respondeu o universitário –, agora eu vou descer na próxima estação, mas deixe o seu cartão que eu lhe enviarei o material pelo correio.
O velho então cuidadosamente abriu o bolso interno do paletó, e deu o cartão ao universitário.
Quando o jovem leu o que estava escrito abaixou a cabeça, e saiu cabisbaixo se sentindo pior que uma ameba.
O cartão dizia:
‘Louis Pasteur, Diretor do Instituto de Pesquisas Científicas da École Normale de Paris’.
Isso aconteceu em 1892.”
A pessoa que me encaminhou o e-mail me perguntou se essa história era ou não verdade. Bom... Pasteur foi um católico fervoroso, segundo a Wikipedia. Tenho certeza de que essa narrativa foi inventada, mas, em tese, poderia ter ocorrido de fato.
O nome do texto é ótimo: “Deus e a Ciência”. Nota-se nele como Pasteur, um homem da Ciência, esvazia o ateísmo ao se professar um verdadeiro cristão. Corroborando à tese desse texto, adiciono outro grande exemplo: Einstein, que era judeu – tendo inclusive cunhado a frase "Deus não joga dados", falando sobre a mecânica quântica (por seu uso de probabilidade para tentar descobrir onde partículas estão, e com que velocidade). Enfim, a existência de grandes ‘homens da Ciência’ defensores do teísmo mostraria a fragilidade da posição dos ateus.
Esta posição é tomada como certa por todos os metidos a missionários, sejam evangélicos ou católicos ou kardecistas ou místicos hippies. Pergunto: por quê? Em que estas pessoas são superiores a mim para julgar a verdade sobre algo?
Enfim, o que torna um cientista digno de respeito intelectual? Nada, a não ser no que concerne assuntos relativos à área de trabalho dele. Em tempo: meus professores na universidade eram pesquisadores em engenharia elétrica. O que tornaria eles uma referência melhor do que eu (ou qualquer outra pessoa) em matérias religiosas? Posso imaginar algum beato respondendo que é o fato de estudarem o “mundo material”, e “buscarem uma explicação para todos os fenômenos”. Se assim for, então por que até hoje a Santa Sé não adicionou cursos de física e cálculo nos seminários?
Este recurso argumentativo, contudo, é muito comum de ser utilizado, e tende a ser muito eficiente junto a mentes fracas. A chave de sua eficácia está na pretensa dicotomia ciência x religião.
Beatos e evangélicos adoram se usar da retórica da distinção entre razão e fé: supor paralelismo entre os conceitos cria a falsa noção de que ambos são caminhos válidos, porém distintos e interdependentes, para alcançar conclusões válidas. A tentativa é de aproximar essa dicotomia do grupo das dualidades conceituais como preto e branco, quente e frio, cheio ou vazio – ou seja, do conjunto semântico dos termos que são definíveis a partir de seus antônimos. Se o missionário consegue fazer esta aproximação, então o conceito de fé pode se camuflar como um conceito natural e necessário ao homem e sua experiência da realidade.
Chama a atenção o fato de que todos estes pares conceituais podem, e devem, ser definidos em separado. As definições podem ser ostensivas, essenciais, ou mesmo mais abstratas: o preto é esta cor aqui (aponto para o plástico de meu mouse), o branco é essa cor ali (aponto para uma folha de papel), cheio é o estado de meu copo quando não é mais possível adicionar coca-cola a ele sem transbordar, vazio é o estado de ausência de coca-cola em meu copo, e assim vai.
Razão é a faculdade humana que consolida e identifica as informações que nossos sentidos nos fornecem. A razão integra a percepção humana a partir da formação de conceitos e abstrações, fazendo o ser humano sair do nível de percepção (que compartilhamos com os animais) e atingir o nível conceitual, que só nós conseguimos alcançar. O método pelo qual a razão realiza este processo é a lógica, e a lógica é a arte da identificação não-contraditória.
Fé é a aceitação de alegações sem evidências ou provas, possivelmente de forma contraditória ao input sensorial ou a conclusões racionais. Fé é a reivindicação de uma forma de conhecimento não-racional, não-sensorial, indefinível e impossível de se identificar; é a suposta percepção de outra realidade – distinta daquela em que vivemos – cuja única definição é de que não é natural e, portanto, só seria perceptível por vias "supernaturais". Fé é o conjunto de todas as formas de "sei porque sei", dos pseudoconhecimentos cuja contestação gera reações agressivas por parte daqueles que os professam.
Interessante é o fato do mesmo Pasteur católico ter dito, numa palestra em 1864, referindo-se a seu experimento mais célebre, que "nunca mais a doutrina de geração espontânea se recuperará do golpe mortal desferido por esta simples experiência".
Seis dias, Pasteur? Claro, claro. Afinal de contas, como um colega católico costuma me dizer, a coerência é um milagre...