segunda-feira, abril 07, 2008

Do Pasteur - ou: da Razão e da Fé

Tive o desprazer de receber há pouco uma corrente de e-mails enviada por um amigo evangélico. Nesta, um conto era narrado, o qual transcrevo ipsi literis abaixo:

“Um senhor de 70 anos viajava de trem tendo ao seu lado um jovem universitário, que compenetrado lia o seu livro de ciências. O senhor por sua vez lia um livro de capa preta. Foi quando o jovem percebeu que se tratava da Bíblia, e estava aberta no livro de Marcos.

Sem muita cerimônia o jovem interrompeu a leitura do velho e perguntou:

- O senhor ainda acredita neste livro cheio de fábulas e crendices?

- Sim. Disse o senhor. Mas não é um livro de crendices, é a Palavra de Deus. Estou errado?

Com uma risadinha sarcástica respondeu:

- Claro que está! Creio que o senhor deveria estudar a história geral. E veria que a Revolução Francesa, ocorrida há mais de 100 anos, fez o favor de mostrar a miopia da religião. Somente pessoas sem cultura ainda crêem nessa história de que Deus criou o mundo em seis dias. O senhor deveria conhecer um pouco mais sobre que os cientistas dizem sobre isso.

– É mesmo? - perguntou o velho cristão. – E o que dizem os cientistas sobre a Bíblia?

– Bem – respondeu o universitário –, agora eu vou descer na próxima estação, mas deixe o seu cartão que eu lhe enviarei o material pelo correio.

O velho então cuidadosamente abriu o bolso interno do paletó, e deu o cartão ao universitário.

Quando o jovem leu o que estava escrito abaixou a cabeça, e saiu cabisbaixo se sentindo pior que uma ameba.

O cartão dizia:
‘Louis Pasteur, Diretor do Instituto de Pesquisas Científicas da École Normale de Paris’.

Isso aconteceu em 1892.”

A pessoa que me encaminhou o e-mail me perguntou se essa história era ou não verdade. Bom... Pasteur foi um católico fervoroso, segundo a Wikipedia. Tenho certeza de que essa narrativa foi inventada, mas, em tese, poderia ter ocorrido de fato.

O nome do texto é ótimo: “Deus e a Ciência”. Nota-se nele como Pasteur, um homem da Ciência, esvazia o ateísmo ao se professar um verdadeiro cristão. Corroborando à tese desse texto, adiciono outro grande exemplo: Einstein, que era judeu – tendo inclusive cunhado a frase "Deus não joga dados", falando sobre a mecânica quântica (por seu uso de probabilidade para tentar descobrir onde partículas estão, e com que velocidade). Enfim, a existência de grandes ‘homens da Ciência’ defensores do teísmo mostraria a fragilidade da posição dos ateus.

Esta posição é tomada como certa por todos os metidos a missionários, sejam evangélicos ou católicos ou kardecistas ou místicos hippies. Pergunto: por quê? Em que estas pessoas são superiores a mim para julgar a verdade sobre algo?

Enfim, o que torna um cientista digno de respeito intelectual? Nada, a não ser no que concerne assuntos relativos à área de trabalho dele. Em tempo: meus professores na universidade eram pesquisadores em engenharia elétrica. O que tornaria eles uma referência melhor do que eu (ou qualquer outra pessoa) em matérias religiosas? Posso imaginar algum beato respondendo que é o fato de estudarem o “mundo material”, e “buscarem uma explicação para todos os fenômenos”. Se assim for, então por que até hoje a Santa Sé não adicionou cursos de física e cálculo nos seminários?

O fato é que não há razão para um cientista ter respostas religiosas melhores do que as minhas. Um biólogo ou um engenheiro é potencialmente tão conhecedor das obras de São Tomás de Aquino quanto um pedreiro. Se nelas estão reveladas partes importantíssimas da dogmática católica, então não há motivos para se crer que um cientista possua mais respostas em matérias religiosas do que um homem qualquer – na mesma medida em que não há motivos para se crer que pedreiros constituam uma classe de pessoas particularmente iluminada.

Este recurso argumentativo, contudo, é muito comum de ser utilizado, e tende a ser muito eficiente junto a mentes fracas. A chave de sua eficácia está na pretensa dicotomia ciência x religião.

Beatos e evangélicos adoram se usar da retórica da distinção entre razão e fé: supor paralelismo entre os conceitos cria a falsa noção de que ambos são caminhos válidos, porém distintos e interdependentes, para alcançar conclusões válidas. A tentativa é de aproximar essa dicotomia do grupo das dualidades conceituais como preto e branco, quente e frio, cheio ou vazio – ou seja, do conjunto semântico dos termos que são definíveis a partir de seus antônimos. Se o missionário consegue fazer esta aproximação, então o conceito de fé pode se camuflar como um conceito natural e necessário ao homem e sua experiência da realidade.

Chama a atenção o fato de que todos estes pares conceituais podem, e devem, ser definidos em separado. As definições podem ser ostensivas, essenciais, ou mesmo mais abstratas: o preto é esta cor aqui (aponto para o plástico de meu mouse), o branco é essa cor ali (aponto para uma folha de papel), cheio é o estado de meu copo quando não é mais possível adicionar coca-cola a ele sem transbordar, vazio é o estado de ausência de coca-cola em meu copo, e assim vai.

Os teístas tentam usar essa distinção em prol dos seus próprios interesses, muito embora nunca se esforcem para fornecer as definições. À luz disso, vou definir os termos razão e fé adequadamente.

Razão é a faculdade humana que consolida e identifica as informações que nossos sentidos nos fornecem. A razão integra a percepção humana a partir da formação de conceitos e abstrações, fazendo o ser humano sair do nível de percepção (que compartilhamos com os animais) e atingir o nível conceitual, que só nós conseguimos alcançar. O método pelo qual a razão realiza este processo é a lógica, e a lógica é a arte da identificação não-contraditória.

Fé é a aceitação de alegações sem evidências ou provas, possivelmente de forma contraditória ao input sensorial ou a conclusões racionais. Fé é a reivindicação de uma forma de conhecimento não-racional, não-sensorial, indefinível e impossível de se identificar; é a suposta percepção de outra realidade – distinta daquela em que vivemos – cuja única definição é de que não é natural e, portanto, só seria perceptível por vias "supernaturais". Fé é o conjunto de todas as formas de "sei porque sei", dos pseudoconhecimentos cuja contestação gera reações agressivas por parte daqueles que os professam.

Interessante é o fato do mesmo Pasteur católico ter dito, numa palestra em 1864, referindo-se a seu experimento mais célebre, que "nunca mais a doutrina de geração espontânea se recuperará do golpe mortal desferido por esta simples experiência".

Seis dias, Pasteur? Claro, claro. Afinal de contas, como um colega católico costuma me dizer, a coerência é um milagre...

3 Comments:

Blogger Diana said...

"Se assim for, então por que até hoje a Santa Sé não adicionou cursos de física e cálculo nos seminários?" - ótimo...

12:10 AM  
Blogger Carlos said...

Realmente, é comum esse tipo de confusão a respeito das autoridades. Que alguém seja muito competente numa área, subitamente se torne apto para disseminar seus palpites aos quatro ventos sobre todos os assuntos com a mesma autoridade.

No caso do email do Pasteur, acho que a pretensão era só desfazer o mito de conflito entre ciência e fé. Um mito que seria pueril, se as pessoas soubessem o que é fé.

Do jeito como foi colocado no texto, Fé é apenas um nome para justificar um 'auto-convencimento' ou uma lógica circular. E, se isso fosse verdade, nada seria mais contrário à ciência do que a fé. Mas não é.

A Fé consiste em acreditar naquilo que você possui razões e motivos adequados para acreditar. Por isso a Fé se fundamenta na Razão, não pode andar dissociada dela. Então, ainda que isso escandalize a todos os "legionários anti-fé", toda a história, a cultura e a convivência humana se baseiam na fé. Pensem que toda a cultura humana baseia-se no fato de que uma pessoa começa daquilo que a outra descobriu e segue em frente.

Por fim, a respeito da afirmação "a coerência é um milagre", cabe uma correção a respeito do contexto original da frase. Ela não está se referindo à uma coerência numa demonstração científica ou algo do gênero. Ela diz respeito ao fato de que, mesmo sabendo o que é o bem e desejando fazê-lo, podemos muitas vezes fazer o contrário. Bom, basta olhar para os nossos relacionamentos mais próximos para entender isso...

12:21 PM  
Blogger Carlos said...

Sobre o comentário de a Santa Sé não ter adicionado cursos de física e cálculo nos seminários, bom, isso não foi feito porque, vocês já desconfiavam, não é necessário saber disso para ser padre.

Contudo, aproveito esse comentário para ilustrar como são fracas as acusações de a Fé ser contrária a Razão. Basta olhar, com um mínimo de sinceridade, para o fato de a Universidade ter nascido no seio da Igreja ou para todo o desenvolvimento científico feito pelos monges. Acreditem, é muito maior do que vocês pensam.

12:25 PM  

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