terça-feira, novembro 20, 2007

Das estatísticas

Dados de uma pesquisa publicada no "American Journal of Public Health" indicam que Diadema conseguiu reduzir pela metade o número de assassinatos nos últimos dois anos devido à proibição da venda de bebidas alcoólicas em toda cidade a partir de 23:00. A pesquisa foi realizada em conjunto por pesquisadores do PIRE Prevention Research Center, de Berkeley, Califórnia, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Nottingham, Inglaterra.

É interessante como as pessoas vêem estatísticas. É um recurso argumentativo excelente, em especial para as pessoas mais malévolas - aquelas que necessitam ganhar a atenção dos ignorantes para satisfazer seus egos diminutos. Em verdade, o uso comum do argumento estatístico em discussões sociais envolve dois erros graves de definição.

Primeiramente, porque em geral coloca a exceção como regra. Digamos que se fale, por exemplo, que "estatísticas mostram que ocorre uma redução de 40% em casos de depredações e roubo a lojas quando se decreta o toque de recolher de menores de 18 anos nas ruas do centro da cidade". Digamos que essa afirmação seja utilizada num debate que tem por tema "a juventude e a criminalidade". A tese subjacente, a principal dentre as várias possíveis, é "é preferível limitar a liberdade dos jovens em prol da proteção do bem comum". Será?

Isto seria assim apenas para o caso de todo jovem ser um delinqüente em potencial, o que é uma absoluta inverdade. O defensor dessa hipótese confunde lógica das probabilidades com lógica das possibilidades: ele pensa que um adolescente é parte idôneo, parte criminoso - ao invés de pensar que existem adolescentes idôneos, assim como existem adolescentes criminosos. Tratar adolescentes idôneos como criminosos é uma violência intolerável, na medida em que direitos fundamentais lhe são cerceados ao se considerar, irracionalmente, que ele possui alguma "predisposição ao mal".

Um tema muito importante no estudo de Lógica Nebulosa envolve a diferenciação entre probabilidade de algo pertencer a um conjunto e o grau de pertinência a um conjunto (que pode ser entendido como um 'grau de possibilidade'). Para explicar esta diferença, elaboro uma pergunta: se alguém estivesse no deserto, morto de sede, e encontrasse duas garrafas d'água - uma contendo a inscrição "Água Potável (Probabilidade 99%)" e a outra, "Água Potável (Grau de Pertinência 99%)" -, qual das duas deveria abrir?

Para este caso, seria preferível escolher uma garrafa com 99% de grau de pertinência ao conjunto de águas potáveis, ao invés de escolher uma garrafa com 99% de probabilidade de conter água potável. Isso, pois no caso do corpo humano, podemos tolerar uma água contendo 1% de impurezas, enquanto que o risco de 1% de abrir uma garrafa contendo água venenosa é simplesmente alto demais.

Este pensamento não pode ser estendido para a área social, simplesmente porque, numa sociedade livre, todos os indivíduos possuem os mesmos direitos - e, especialmente, não existe algo como o direito de se cercear direitos. Tal prerrogativa é imoral, na medida em que colocaria indivíduos como superiores a outros. E, em matéria de moral, não existe algo como sujo e limpo ao mesmo tempo.

Em segundo lugar, porque confunde o que vem a priori e o que vem a posteriori. Voltemos à questão do álcool. É indiscutível a correlação entre consumo de álcool e violência; tal relação já foi atestada em um sem-número de estudos. Mas tal comprovação não indica, em hipótese alguma, que consumo de álcool implica violência. Para se entender isso, pensemos em duas características típicas da síndrome de Down: ter língua protrusa e pescoço curto. É imediato observarmos que existe uma correlação positiva entre estas duas características - ao mesmo tempo, não é verdade que ter pescoço curto implica ter língua protrusa; o Lula está aí como exemplo (ele pode ser retardado, mas não é Down). Ter um cromossomo 21 a mais implica ambas as características, contudo - e esta é a verdadeira razão a priori.

A mera existência de indivíduos que ingerem álcool e não se tornam agressivos anula a hipótese da implicação entre álcool e violência. Decorre que, de fato, algumas pessoas bebem e permanecem tranqüilas, enquanto outras bebem e ficam violentas. A proibição de beber penaliza aquelas que desfrutam de sua liberdade de modo responsável. Existe algum fundamento moral nestas serem prejudicadas pelos atos de terceiros?

Admiráveis são aqueles que respondem corretamente esta pergunta.